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74. Comparação do Bispo do Rosário com Revière 2

25/02/2020

Já foi mencionado anteriormente que ninguém pode ser dono do saber. A necessária transparência implica o conhecimento público de qualquer interessado e não pode pertencer somente a uma casta de privilegiados. O saber médico, psiquiátrico e psicanalítico não podem ser ocultados. Pertencem a todos nós.

Para Foucault e outros, os estudos sobre o memorial de Rivière e a publicação do livro, certa beleza do manuscrito, “partiram de nossa estupefação”. Foucault e sua equipe não quiseram ignorar o trabalho alienante da razão com o trabalho liberado do desejo. Até que ponto eles não enfatizaram os próprios desejos sobre a beleza do manuscrito feito no memorial? Batalha de discursos e, por meio de destes, confronto e poder. Todos falam ou parecem falar do crime. É evidente o confronto entre saber e poder.

O que realizamos quando fazemos análise? Não existe um pensador sequer que tenha a mesma ideia de qualquer outro. É óbvio que isso vale também para qualquer pensador, filósofo ou psiquiatra. Assim, Foucault elaborou reflexões antigas acerca de Rivière e, para mim, provavelmente as melhores. Já mencionei um pouco a história de Bispo do Rosário. Qualquer abordagem é sempre interpretativa e diz respeito à inter-relação imaginária produzida com palavras. As coisas sempre serão inatingíveis. Sempre haverá um confronto entre fantasia e realidade, entre fatos e palavras explicáveis.

Os fatos criminosos ou não dependem do contexto, dependem do poder. O saber é apenas um certo crédito conferido a uma ideologia e seus membros. Interpretação linguística.

As práticas discursivas estão vinculadas ao campo do saber. Normas, como já foi descrito antes, e como conhecemos. Normatização implica uma ideologia própria associada à disciplina e poder. Ideologia e muito de cada ciência somente existem como categoria do pensamento. As práticas são sempre simbólicas e quase nunca coercitivas.

É muito importante observar o confronto dos discursos como no caso de Rivière. Também em cada história estudada: Foucault faz o estudo desses confrontos, desejos, verdadeiras batalhas. Podemos observar sua brilhante análise articulada com o poder sociopolítico, conforme deve ser. É claro que existem semelhanças entre o parricídio e regicídio no âmbito monárquico do velho regime e no alvorecer republicano. Também há discursos até opostos dentro do saber jurídico e do saber médico, portanto psiquiátrico. As contradições entre a justiça e as psicopatias são expostas com muita objetividade.

Foucault enfoca a problemática entre narrativa e ato destrutivo de Rivière, com vários discursos diferentes na medicina, no plano do saber jurídico, entre as variadas testemunhas dessa convulsa e complexa época da história da França. Também a história de Bispo do Rosário aponta para problemas da época no Brasil.

Os manicômios brasileiros objetivavam muito mais do que a cura, um evidente afastamento da sociedade para que a loucura não produzisse discursos denunciados no status quo. Era, como ainda é em várias oportunidades, a ideia de manter calada a loucura e suas vicissitudes difíceis entre nós, os chamados civilizados. Nada de provocar mudanças profundas nas instituições, embora a aparência possa sugerir algo bastante diverso.

O leitor já percebeu o discurso de Foucault sobre esse texto que persiste tanto tempo, referindo-se a uma trágica história em uma pequena comunidade. O polêmico filósofo francês escolhe esse texto por sua beleza e estupefação, segundo suas próprias palavras, como já foi enfatizado. Organiza um discurso e um livro comoventes na forma de metalinguagem, sinalizando as contradições evidentes.

Tenho minhas dúvidas, e preciso dividi-las com o leitor, sobre o porquê escreve acerca do diagnóstico em psiquiatria. Já não acredito muito nele. Qual é minha metalinguagem e sua significação ao enunciar palavras e cadeias associativas sobre as palavras de Foucault, e este sobre as palavras de Rivière no clássico livro conhecido?

Tanto Rivière como o Bispo do Rosário e outros milhões de psicóticos desejam e, ao mesmo tempo, resistem em falar sobre a loucura. Medo e também algum desejo em cometer atos ilógicos, obscuros e estranhos. Mas, o medo do ilógico, estranho e obscuro é bem maior do que o desejo.

Para finalizar essas narrativas sobre dois psicóticos famosos, algumas palavras de Eduardo Galeano sobre o Inventário Geral do Mundo, realizado pelo célebre Arthur Bispo do Rosário, no qual sete anjos azuis transmitem a ele a ordem divina:

“O inventário do mundo, inconcluso, estava feito de ferro-velho,
Vidros quebrados,
Vassouras calvas,
Chinelas caminhadas,
Garrafas bebidas,
Lençóis dormidos,
Rodas viajadas,
Bandeiras vencidas,
Cartas lidas,
Palavras esquecidas e
Águas chovidas.
Arthur havia trabalhado com lixo, porque todo lixo era vida vivida, e do lixo vinha tudo o que no mundo era ou tinha sido. Nada de intacto merecia aparecer. O intacto tinha morrido sem nascer. A vida só latejava no que tinha cicatrizes” ​
(Página 354, em Amares, de Eduardo Galeano).

É muito importante verificar que ele só valorizava as coisas que algum dia foram inúteis. O lixo e nada novo poderiam merecer destaque. O intacto, o novo, o ainda não utilizado não nasceram, não existiriam. Só o lixo poderia ser reutilizado. Assim fez com tudo: das próprias roupas até seus objetos colecionados.


No próximo texto continuo a narrar as comparações entre Bispo do Rosário e Rivière.

E DAÍ?

Determinado, mas a esmo,
eu mesmo,
na procura de mim mesmo.
Tomando cerveja.
E comendo torresmo.
Vejo com desprezo
certo aumento de peso.
Feliz, brinco com o tenesmo.


Carlos Roberto Aricó

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