72. Introdução aos crimes de Pierre Revière 2
11/02/2020
Conforme temos enunciado, o discurso psiquiátrico, ao se articular com o discurso narrativo, estabelece espécie de ordem simbólica, porém poderosa nos desdobramentos do chamando diagnóstico psiquiátrico. Os textos, os acontecimentos históricos ou cotidianos, as ações trágicas e suas decorrências ultrapassam o silêncio. Desde 1835, na vida de Revière ou na atualidade, ainda persistem plenas contradições. Um planeta confuso, sórdido e também maravilhoso. Com tantas histórias em jogo.
Claro que se interpretam fatos conforme a projeção de cada sujeito envolvido. Às vezes, a interpretação ultrapassa os fatos. A história é narrada por intermédio de indivíduos muito distantes da neutralidade, quase utópica. O sujeito de cada saber é muito influenciado pela sua posição no contexto político e econômico próprio de cada classe social. Assim surgiram os discursos até contraditórios entre o saber médico, psiquiátrico também e o jurídico.
No memorial de Revière encontram-se narrativas próprias da alienação mental. Deus teria pedido a execução de seus próximos, mas também várias explicações sobre seus atos, tendo como objetivo fazer a justiça do pai de Revière. Ou seja, ele transgride a famosa normalidade, mas não alucina ou delira verdadeiramente a ordem divina. Aqui gravitam discursos acerca do normal, do anormal e do patológico, lembrando que aqui patológico é algo que ultrapassa os limites da normalidade, constituindo-se em verdadeiro transtorno mental.
Foi seu discurso para salvar o pai das agressões maternas que pôde originar as formas de evitar a morte de Revière. As circunstâncias atenuantes transformaram a pena de morte em prisão perpétua. Seu suicídio já era esperado, se considerarmos que ele, como é próprio dos assassinatos, julgava-se morto.
A medicina e a justiça propiciaram discursos até contraditórios, como já foi enunciado. Em histórias semelhantes, a importância reside em se retirar do convívio social alguém que seja um criminoso, um assassino: manicômio ou prisão. Para indivíduos considerados semi-imputáveis, as casas de custódia para tratamento bastante discutível e, na maioria das vezes, a hipocrisia também fazem suas vitimas até nos países desenvolvidos. A loucura, a desrazão e o anormal apresentam-se sempre complexos. O diagnóstico psiquiátrico muitas vezes é utópico, idealizado e pleno de questões misturadas com tantas dúvidas.
Parece-me claro que deva haver motivos conscientes ou inconscientes para a crítica ou estímulo a novas reflexões sobre a linguagem de Foucault. Este, conforme já enunciamos, fez da beleza um profundo estudo sobre Revière à luz de discursos contraditórios em alguns campos operacionais do saber. Produzo uma metalinguagem sobre sua análise, talvez por me sentir constrangido face ao discurso acadêmico; ou por explicitar minha pretensa sabedoria e meu voluntarioso narcisismo; ou, quem sabe ainda, para estimular mais discussões relativas a certa epistemologia do diagnóstico psiquiátrico.
É provável que existam várias outras motivações do inconsciente do autor, que costuma cotidianamente, há praticamente meio século, autorizar-se no lugar do sujeito do suposto saber como ocorre com tantos outros psicanalistas. Isso, no âmbito da releitura de Freud estabelecida por Lacan. Também estou consciente de que outros indivíduos articuladas a vários saberes possam elaborar outras metalinguagens relacionadas ao mesmo texto aqui desenvolvido.
É sempre fundamental nossa credibilidade de que Revière assassinou a mãe grávida, a irmã mais velha e sua irmã menor, segundo ele, para proteger seu pai. O assassinato parece que aconteceu mesmo como seu memorial que contém as justificativas de seu delito e tantas outras consequências. De resto, só opiniões e respostas às perguntas dos envolvidos no caso trágico, até monstruoso e pleno de muitos discursos. Textos todos eles muito emblemáticos.
Volto a considerar a complexa historia de Revière, tanto assassinato tríplice, como seu memorial: texto-ação e texto-narrativo. Também devem ser considerados os discursos médico e jurídico e as observações das testemunhas. As dificuldades são evidentemente relevantes. Ainda não havia o saber psiquiátrico organizado como hoje.
Ao se conhecerem os elementos textuais sobre Revière, verifica-se que o espectro diagnóstico é bastante amplo. Desde a normalidade e, portanto, imputabilidade até alienação e loucura. Já mencionei isso antes em outros textos.
Maldades com animais e crianças, vozes e gritos solitários, bizarrices e extravagâncias emanam de uma abordagem acerca da personalidade premórbida: anterior ao assassinato. Esses acontecimentos associados a uma cognição pobre procuram demonstrar a falta de inteligência e racionalidade de Revière. Parece, contudo, que ele soube explicar seu terrível crime no âmbito da coerência. Apesar de tudo isso, hoje e há cerca de quase 200 anos, os psiquiatras provavelmente engrandeceram essa história como discurso sobre alienação mental. Foi a loucura de Revière o determinante básico para escapar da pena de morte e merecer a comutação por meio do indulto. Não era totalmente capaz de se autodeterminar por ocasião do infeliz acontecimento.
Conforme se sabe, Revière nunca abandonou sua vocação suicida. Sempre esteve flertando com a morte. Quando preso, dizia que já estava morto, o que foi narrado antes. Somente protelou sua ação autoagressiva até quando isso foi possível.
As contradições e todo o brilhante texto de Foucault, realizado com outros pesquisadores, não permitem a negação para associar os vários discursos com algum saber psiquiátrico, gravitando em torno do normal, do anormal e da loucura. Acredito ser possível um saber médico psiquiátrico, mesmo se levando em conta as dificuldades peculiares à humanização do ser biológico. O primata humanizado não é mais somente um ser da natureza. Trata-se de um ser ora privilegiado e ora medíocre em suas infinitas vicissitudes. Trata-se de um ser orgânico que adquiriu estranhamente o enorme poder da linguagem.
Na próxima semana, escreverei sobre o Bispo do Rosário, ainda elucidando um pouco mais o chamado diagnóstico psicótico e sua complexidade.
INEXISTENTE
Ser pedra, Pedro ou Paulo.
Ser José, sem movimento.
Parado e só silêncio,
vendo o tempo passar,
sem significado.
Dentro morto, frio, úmido.
Nas estações do ano,
vejo estático
o tempo passar.
Os ciclos passam.
Contemplação do impossível.
Percorro, impassível.
Vivo. Assim caminho e morro.
Longe dos braços,
singular espaço
sem plural, escasso.
Vivo, percebo, fracasso,
um inexistente e
triunfal abraço.
Um inexistente e
monumental compasso.
Vivo e percebo mais um fracasso.
Vivo preso em ausente laço.
(poesia de minha autoria)
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