55. Neurose, psicose e criatividade 4
26/08/2019
Dirijamo-nos à contemplação do espetáculo do mundo vinculado à dialética entre o olho e o olhar. Das artes, particularmente a pictórica se articula com a pulsão ao nível do campo escópico. Sabemos que o olhar é provido do privilégio essencial na função do desejo. Da reciprocidade do olhar e do olhado emerge o vejo-me ver-me, bem como o ver-se vendo-se. O objeto privilegiado surgido de alguma primitiva separação foi denominado por Lacan de objeto a.
O olhar é esse avesso da consciência, lugar da relação do Eu com o que está em volta. Salienta Sartre: "No que estou sob o olhar, não vejo mais o olho que me olha, e se vejo esse olho, é então esse olhar que desaparece”.
Trata-se aqui, evidentemente, de uma espécie de escotomização do olho logrado pelo olhar. O olhar que cada indivíduo encontra não é nunca um olhar visto, mas um olhar imaginado pelo indivíduo no campo do outro. O sujeito nadificado, que corresponde à encarnação da imagem da falta primordial, torna-se visível a partir do privilégio do olhar. A falta diz respeito à castração e é simbolizada por Lacan por meio do -φ.
Considerando o olhar como objeto a, como foi enunciado, devemos interpretar cada quadro por certa armadilha do olhar, na qual a luz encarnada em todos os pontos do quadro, por meio de todas as cores, propicia um logro originado da escotomização já referida. A pintura nunca é uma reprodução realista das coisas do espaço exterior e nem corresponde literalmente ao mundo representacional dos filósofos. Lembrem-se de que o quadro pinta-se no fundo do olho de cada sujeito. O quadro está no olho do sujeito que também está no quadro.
Assinala Lacan: "O que e luz tem a ver comigo, me olha, e, graças a essa luz, no fundo do meu olho, algo se pinta – que, de modo algum, é simplesmente a relação construída, o objeto sobre o qual demora a filosofia - mas que é impressão, que é borboteamento de uma superfície, que não é, de antemão, situada para mim em sua distância. Aí está algo que faz intervir o que é elidido na relação geometral - a profundidade do campo, com tudo que ela apresenta de ambíguo, de variável, de não dominado de modo algum por mim. É mesmo mais ela que me apreende, que me solicita a cada instante e faz da paisagem coisa diferente de uma perspectiva, coisa diferente do que chamei de quadro”.
É evidente que, em cada pintura, manifesta-se sempre alguma coisa própria do olhar. O pintor seleciona certo modo de olhar, e é como sujeito, como olhar, que o artista dirige-se a nós, fazendo-se presente e, ao mesmo tempo, impondo-nos algo do olhar. As formas e cores selecionadas pelo pintor pretendem sujeitar-nos a depor o olhar como se depõem as armas. Citando Lacan:
"A origem do quadro - em relação àquele a quem o pintor, literalmente, dá a ver seu quadro - tem uma relação com o olhar. Essa relação não é, como pareceria à primeira vista, armadilha de olhar. Poderíamos crer que, como o ator, o pintor visa ao você-me-viu e deseja ser olhado. Não creio nisto. Creio que haja uma relação ao olhar do aficionado, mas que é mais complexa. O pintor, àquele que deverá estar diante do seu quadro, oferece algo que, em toda uma parte, pelo menos, da pintura, poderia resumir-se assim - Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas. Aí está o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição, do olhar.”
Enfatizamos o objeto a em sua função de simbolizar a falta central do desejo. O -φ da falta e da castração esvanece frente ao objeto privilegiado na dialética do olho e do olhar. O logro relaciona-se ao mimetismo, que como sabemos engendra possibilidades de vida e morte nos avatares naturais do reino animal. No amor, campo perene da poesia e do sofrimento, o olhar quer enganar o olho: jamais me olhas lá de onde te vejo” ou "O que eu olho não é jamais o que eu quero ver”.
De maneira geral, a relação do olhar com o que queremos ver é uma relação de logro. O sujeito apresenta-se como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, quer dizer, no nível da falta.”.
Retornando ao tema da produção pictórica, novamente saliento o fato de que o quadro não se articula no campo representacional. Mostra sempre uma ausência, algo escondido pela luz nas sombras da esquize entre o olho e o olhar. Existe um dar-a-ver, um desejo voraz do olho, no indivíduo que olha. O gostar do quadro, o êxtase na apreciação da pintura, consiste em alimentar a voracidade do olho, em negar a falta pela ilusão de completude e em suturar o imaginário com o simbólico no privilegiado instante de ver.
Na próxima semana encerrarei esse tema com “Neurose, psicose e criatividade 5”.
TEMPO
Buracos enormes
povoam as almas.
Tão vazias no olvido
de tantos adeuses, espantos.
Os inúteis de sempre,
são plenos do imprestável.
Corpos despencam no cotidiano,
desmoronam, desmancham-se
no implacável trabalho
dos segundos.
Corpos de bons e dos maus
também despencam no cotidiano.
Rapidamente.
(poesia de minha autoria)
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