54 Neurose, psicose e criatividade 3
19/08/2019
Temas literários permeiam toda a obra psicanalítica, desde o início até os últimos trabalhos de Freud. Propomos uma modificação temática. Assim, analisaremos posteriormente a pintura, que, dentre todas as artes, é aquela que melhor ilustra a relação olho-olhar com o chamado Objeto A, conceito fundamental elaborado por Lacan ao longo de seus estudos.
Desde o enunciado, observa-se a fixação do sujeito a um objeto: marco histórico da dialética intersubjetiva. O Objeto A evoca uma substância que preenche um certo vazio. Daí a necessária ilusão daquilo que completa o que falta ao sujeito. Deste lugar vazio nasce o desejo humano e todas as suas consequências. O Objeto A escapa sempre da cadeia significante em sua característica de irredutibilidade básica do sujeito encobrindo o ser.
Agora, farei considerações relacionas à psicanálise no âmbito da releitura lacaniana. O leitor verá o Complexo de Castração de modo muito diferente da castração anatômica do pênis. O falocentrismo simboliza dor ou falta, a ser compensada pela criatividade, tanto no campo científico (articulado à razão), como no artístico (articulado às motivações inconscientes).
Pretendo demonstrar que cada ato criacionista corresponde à reação do sujeito diante da falta primordial mobilizadora do Objeto A.
Toda criação científica ou artística objetiva, em última instância, negar a castração, que, antes de mais nada, zomba do pobre pênis decepado pela lâmina afiada da ignorância. Do órgão pênis até a organização social, o falo desfila como objeto mítico da relação com o outro. Castrar equivale simbolicamente a perder ou separar.
A castração associada ao fantasma edípico exerce função de interditar e marcar normas. Parte essencial da imagem egoica representada pelo narcisismo, a castração, na ordem cultural, determina a lei reguladora das relações interpessoais. O interdito coloca ordem na cultura, estabelecendo o incesto.
A ilusão de completude que restaura o narcisismo sobrevive ao negar a castração.
Veremos como, na produção pictórica, a voracidade do olho trabalha com o propósito de negar a castração. Também analisarei a seguir as relações complexas do fantasma com a criatividade e a sublimação. A estrutura fantasmática certamente pode mobilizar a criatividade humana, mas também, é claro, o suceder neurótico, perverso psicossomático ou psicótico. Como se sabe, a ordem do fantasma difere do registro imaginário, ainda que também gravite no campo misterioso da ilusão. O imaginário diz respeito à imagem do semelhante, à imagem do outro, na qual se articula o desejo.
O fantasma corresponde à cena imaginária na qual o sujeito pode apresentar várias formas que configuram uma estrutura contendo as marcas mais remotas da história do sujeito. Antes já foi assinalada a estrutura fantasmática em termos freudianos, como a clássica novela familiar cujos protagonistas banalizam o Édipo. Mesmo assim, ainda proporcionam encanto e magia. Os temas do incesto, adultério, filhos ilegítimos e tramas insidiosas geradas pela competitividade, conforme nos revela a psicanálise, estabelecem a estrutura fantasmática. Tanto o artista criador como sua obra e cada um de nós face à criatura encontramo-nos todos entrelaçados no visível próprio da vertente sintomal e no poderoso invisível da estrutura fantasmática. E em todo ato criacionista a ordem das coisas pode ser resgatada, por meio da ilusão de completude que logra e dissimula a falta primordial.
Agora, os apontamentos caminharão no sentido das complexas relações entre a estrutura fantasmática com as possibilidades criativas. O indivíduo que chega à análise por meio dos sintomas que causam desconforto reconhece a norma sem se apoiar na lei. Assim como não há pecado sem lei, também não há criatividade sem lei. O "proibido" funciona como última defesa do homem contra a morte de seu desejo. O "proibido" emana da lei. No ato criativo, a norma é relativizada e subvertida pela lei: suporte simbólico que pode criar sobre o imaginário (dentro da norma implica um reconhecimento e não criatividade).
A mudança da posição do sujeito em relação à estrutura fantasmática, a “travessia" do fantasma revelado pelo sintoma, promove os atos criativos articulados com a sublimação.
As forças da natureza, a fragilidade do homem e a inadaptação às normas sociais causam sofrimento. O homem reage à infelicidade procurando diversão, ou substituição (ilusões), ou intoxicação. Produz valores como o belo, o cômico, o trágico e o sublime no campo estético inserido à arte. Produz saber ou conhecimentos próprios da ciência, por meio das generalizações estabelecidas em leis. Produz filosofia, por meio da fé nos limites da religião. Por intermédio dos costumes originados na tradição, produz os mitos. Produz filosofia, espécie de mãe da ciência, que propõe problemas para a ciência responder. Em todos esses âmbitos, o ato criativo implica sempre a produção de algo novo a partir do nada ou a partir de algo já existente pela força da transformação.
A estrutura fantasmática no indivíduo neurótico produz reconhecimento e não criatividade: a norma é mantida a qualquer preço. No sujeito psicótico, a norma é subvertida em todas as significações, mas como o indivíduo produz à margem da lei, permanece fora da cultura nesse território obscuro de onde o OUTRO foi excluído. A "travessia” do fantasma, que subverte o sujeito e produz ruptura com a norma, inclui a lei em todas as suas vicissitudes, possibilitando, assim, o ato criacionista.
À lógica dialética, Deleuze opõe a lógica maquínica. O otimismo ingênuo da dialética, quase cristão, pressupõe uma vitória da síntese. Por que acreditar que sempre haverá uma síntese feliz na qual os contrários complementam-se e se superam? Não é possível ocorrer morte total do sistema por fracasso da síntese? Fazendo analogia entre o pensamento deleuziano expresso na crítica da dialética com os sintomas neuróticos e psicóticos relacionados com a criatividade, acreditamos ser possível imaginar, de um lado, a manutenção do sistema, ou, como escrevíamos antes, da norma, e, por outro lado, a destruição radical do sistema ou da norma.
Ambos os lados apontam para o fracasso da síntese. 1º) o sistema não pode ser modificado, havendo medo frente às coisas novas. O status quo articula-se com a territorização. Referimo-nos, dessa forma, ao sujeito neurótico, incapaz de romper com a norma. 2º) O sistema vive em movimentos. Perdem-se os referenciais. Destruir por destruir torna o sujeito apaixonado pela abolição da norma. Há aqui um processo contínuo de rupturas, originadas do sujeito psicótico.
Na criatividade, o êxito da síntese retoma o estado anterior com a inclusão do novo. Existe sempre algo de ruptura com a norma. Coexistem lado a lado a vida e a morte do sistema. Os modelos clássicos são rompidos, mas alguns referenciais permanecem alicerçados na Lei e, consequentemente, na cultura. O resgate de certa ordem integra novas significações, por meio da vitória da síntese. Como estamos enfocando, percebe-se que a lógica maquínica, em seu realismo cético, admite igualmente possibilidades criacionistas, bem como destrutivas.
Nas próxima duas semanas continuarei esse assunto tão extenso.
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(poesia de minha autoria)
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