43. Clínica psicanalítica
29/04/2019
Minhas próximas considerações dizem respeito à clínica, que, para mim, sofreu algumas modificações importantes ao longo dos anos. Não precisamos reinventar a metapsicologia, pois cada indivíduo não deve refazer o percurso de todo humano ao editar novamente sua história infantil como a fantástica história de todos nós. O propósito de cada psicanalista é estudar o campo transferencial não pensando na “cura" que segue o modelo médico, mas sim proporcionar o complexo autoconhecimento, sempre bem mais profundo.
Com o preparo necessário e no tempo que for requerido, em um ambiente quase neutro e quase ficcional, nós, os analistas, buscamos um novo contato no mundo interno de cada indivíduo entre o sujeito com o outro e queremos ver como eles internalizam a realizada externa. Assim, ele vai descobrindo-se e criando um novo homem, ainda que inserido a tantas relações injustas do mundo atual, conforme já foi amplamente enunciado com bastante detalhes em minhas páginas de amor, capricho, carinho e confusão.
De modo muito resumido, chamamos de transferência todas as fantasias, sentimentos, reflexões, desejos e medos que cada pessoa relaciona dentro do próprio mundo interno ao se encontrar com o psicanalista. O fenômeno da contratransferência diz respeito a todo mundo interno que também existe dentro do psiquismo do analista, ao se encontrar com o seu paciente.
No momento, enfatizo essas fantasias no interior dos pacientes, no qual começa a transferência antes mesmo de qualquer encontro. Quero um analista mais velho? Quero um analista homem? Desejo um analista professor? Alguém perto de casa? Isso tudo já é evidentemente uma escolha transferencial e isso tudo se produz na desrazão metapsicológica do inconsciente. Como será meu próximo paciente? Observem a lógica do insolente na figura teoricamente neutra do psicanalista, que não deixa de ter também fantasias de todos os tipos.
Meu contrato de trabalho analítico é, acredito, bem simples: a gente vai se ver em outro momento? Desse modo, vão surgindo as questões da pessoa que me procura e sem nenhuma pressa vamos fazendo um contrato sobre nosso estranho e singular trabalho. Tudo que for possível será discutido e, assim, vamos estabelecendo o contrato, e fico atento a suas demandas. Preço, duração, frequência nas sessões. Procuro sempre interagir com o analisando. Às vezes, facilito as coisas, para dar continuidade ao tratamento. Assim, a vida continua e o contrato vai se fazendo. Vejo de alguns paciente assuntos como férias, do tempo de cada sessão, da frequência e assim por diante, sem ao menos ouvir algum ansioso em uma situação incômoda falar de si próprio. Queixar-se e descrever- nos seu sofrimento, sua dor, seu mal-estar. A sessão deverá ser de no mínimo 40 minutos. Alguns lacanianos falam em pontuar e assim termina uma sessão só de cinco minutos.
Não acredito na eficiência desses poderosos cinco minutos. Não dá tempo para quase nada. Quanto à frequência das sessões, no início de minha formação dizia-se: cinco ou quatro semanais. Psicoterapia de influência ou base psicanalítica: três sessões. De uma a duas semanais: psicoterapia de apoio. Acredito que o inconsciente pode aparecer independentemente do número de sessões. A gravidade da doença também não pode determinar nada, mas sim as possibilidades no mundo atual. Creio que, para alguns psicóticos, deveríamos, se possível, viver com eles em comunidade, para o necessário tratamento psicanalítico. Todo tempo possível e inúmeras possibilidades para entender o que interpretar.
Onde devo sentar? Sento ou deito no divã? Observo que o paciente espera ordem de minha parte, autoritarismo ou solução. Não sei e digo isso: “Onde você sentir-se melhor”. Tudo objetivando autoconhecimento e não cura de algum sintoma, como ocorre muitas vezes na prática médica. É de extrema importância enfatizar que o setting é o lugar do faz de conta, da mentira, onde o mundo real não se expressar. Trata-se do campo do desejo humano e nunca de alguma necessidade até fisiológica ou biológica. No consultório, tudo pertence ao campo representacional. Inclusive toda a materialidade “concreta" agora é virtual, é linguística e, portanto, também interpretável. Nesse lugar mágico, estranho, tudo é possível, é claro, sem nenhuma materialidade. Apenas uma associação de palavras, um texto, um falar significando os limites humano: um falar bem possível só no campo transferencial, no faz de conta. Como esse espaço é de mentira, ele pode ser idealizado ou ser persecutório.
Pode o analista ocupar, na expressão lacaniana, o “sujeito do suposto saber” para que haja fortes enunciados transferenciais e em determinado momento ele pode ser odiado e literalmente perseguido: é o campo da resistência, do impedimento das associações e dos bloqueios. No vértice dos extremos: idealização ou persecutoriedade, a psicanálise pode antes do necessário chegar ao fim. É bastante oportuno sempre levar-se em conta o bom senso. Nós sabemos que só o bom senso não consegue resolver tudo, mas ajuda muito.
Juntamente com a formação do psicanalista e as experiências adquiridas no exercício profissional, pode-se fazer progresso objetivando à melhor prática possível, longe do perfeccionismo e das utopias metodológicas. Não devemos modificar muito o nosso consultório. As coisas devem permanecer nos mesmos lugares. O uso do divã pode permitir certa diminuição das associações induzidas pelo ambiente. É claro que tudo isso serve para nossas interpretações, objetivando mais autoconhecimento, como sempre.
O leitor já sabe bem que nosso consultório não pode ser herança fiel do consultório médico. Deve ser um lugar mágico, que sempre nos afasta da realidade objetiva.
Na próxima narrativa, farei considerações sobre o sujeito: antes ética e hoje norma.
LEMBRANDO
A memória caminha,
segunda, terça, quarta.
A memória caminha,
quinta, sexta, sábado.
Hoje é domingo,
nada foi resolvido lá trás.
Remorso, memória,
tantas coisas mais:
saem todos pra passear.
Em alguma parte da alma
problemas se repetem.
A memória incessantemente caminha.
Vai ao cinema todas as noites,
não come pipoca.
Vai ao cinema todas as noites
e não come Big Mac.
A memória se alimenta
de temporalidade e passado.
(Poesia de minha autoria).
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