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42. A interpretação

22/04/2019​

Em um contexto artificial, “faz de conta”, tanto as necessidades reais, biológicas e o mundo externo objetivo devem permanecer neutros para que ocorra a parte principal do processo analítico: a interpretação. Esta objetiva, depois de considerável tempo, criar mais autoconhecimento e combater as identificações feitas e mantidas pelos analisandos.

O psicanalista permanece em atenção flutuante, como alguém que não quer nada, que não deseja e se encontra desvinculado das lembranças. Sua memória não deve buscar recordações (para que não o afaste do momento) e ele deve permanecer sem buscar compreensão e sem desejo de cura. Tarefas difíceis que tendem a negar o analista como um ente vivo no qual nada interessa.

Ele ocupa o lugar do sujeito do suposto saber. Escutará significantes e não significados tão reveladores dos pacientes em análise. Estes vão fazendo associações com as palavras possíveis no âmbito civilizado. Quando ocorrer alguma significação, esta será apontada pelo analista, que procura escutar com neutralidade, ou pelo menos com a neutralidade possível, sua lógica de razão explícita. Vai revelando a si próprio seus pacientes.

À medida que o analisando perde suas identidades, começa a perceber o mundo interno e a realidade objetiva de outra forma, de um modo novo, e não recorre mais aos seus modelos comuns e repetitivos no conhecimento do universo interno e do externo;

Reconhecimento possível, é claro.

Para ocupar um referencial sem desejo, como o sujeito do suposto saber, com toda neutralidade possível, sem memória, sem pretender curar, o psicanalista deve “matar" seu mundo interno. Ocupar o lugar do “morto", e isso nunca é uma tarefa fácil. Por sorte, o analisando repete muitas vezes determinado comportamento passível de ser analisado. Compulsão para repetir, em Freud, ou insistência da cadeia significante, em Lacan, facilitam a insólita vida do analista em determinada sessão.

É fundamental que o indivíduo que vem para um analista faça algumas associações ou até se silencie. Isso pode elucidar significados reveladores. Apenas isso, no horário combinado, no encontro de muito respeito ao contato dessas pessoas.

O psicanalista dirige, quando ocorrer possibilidade, sua atenção para aspectos afetivos e emocionais do analisando e fica à procura do papel a ele atribuído. É importante descobrir a “lógica dos sentidos” ou a “lógica das emoções”, nas quais se explicita e se organiza o desejo, sempre a partir do inconsciente. A disposição entre os dois envolvidos na análise permite relevar o papel imposto ou desejo pelo paciente ao sujeito do suposto saber.

Como estou enfatizando, é bastante útil captar o sentimento afetivo e disposicional das cadeias associativas expressas pelo analisando. A escuta no campo transferencial permite o encontro do material a ser interpretado. As emoções, as fantasias e os desejos fazem cada um de nós confundir a realidade objetiva com o nosso profundo e narcísico mundo interno, povoado por intensificações múltiplas e mitologias individualizadas.

O analista busca um lugar fechado, com o sigilo necessário e sem muita interferência do mundo lá de fora. Não se deve interpretar tudo por meio de cada analista no centro das projeções muitas vezes ausentes. Além de criar persecutoriedade notória, cada analista pode afastar-se de uma adequada e legítima interpretação. Nunca devemos criar ou estimular figuras teóricas para interação, e a atenção flutuante pode ser conquistada.

O analista vive praticamente em um estado de tranquilidade. O seu paciente, porém, vive na angústia e, às vezes, até desespero de ser abandonado nas suas idealizações. O analisando está com medo, aflições e mudanças determinantes de um novo perfil de identificação. Busca novas referências e sofre em seus desencontros nesse psiquismo contraditório, não razoável e enlouquecido. Todo o cuidado é pouco nessa atmosfera conflitante.

A disposição e os aspectos afetivos devem ser objetivados quando possível por meio da interpretação com simplicidade, sem eloquência, sem mérito das idealizações e sem a pretensa sabedoria. Cada analista tem de ser o mais modestamente simples, distante das figuras retóricas.

Na interpretação, muitas vezes o analista deve dizer algo que já é esperado, mas sempre com moderação e reserva. Livre do diálogo interior, diz sua “verdade”, como já foi enfatizado, com o respeito e os cuidados necessários, pois produzirá certa ruptura ansiogênica no campo transferencial. O paciente sofre angústia com transito constante, dentre tantas representações produzidas no ato interpretativo.

O analista tem de estar atento para as escansões ou lacunas de um tema a outro e também as disposições criadas. Pai e filho, sádico e masoquista, professor e aluno, senhor e escravo. Também os inúmeros outros papéis. Aqui, a história é o passado, historiado no presente. Trata-se de uma reconstrução bem mais importante do que uma revivência apenas afetiva e ocorre no aqui e no agora presentes. Reescrever é mais importante do que a história como lembranças simples. A totalidade dos preconceitos de cada analista deve ser evitada ao máximo. Cabe ouvir significantes e não ouvir antecipadamente significados; lembrar sempre que possível que o ego de cada paciente pode criar resistência à análise do mundo interno. É bastante difícil combater as velhas e repetidas identificações para manter o ego inalterado.


No próximo texto farei algumas considerações sobre a clínica psicanalítica, que é muito diferente da clínica médica.

AINDA POEMA

Em mim,
inúmeros idiomas,
desconhecidos alfabetos,
significações sem fim.
Redomas de letras.

Estranhos significados
em mim,
branco no papel ruidoso,
ruidoso silêncio,
brinca assim.

Hieróglifos.
Ideogramas.
Alfabetos assim.
Letras gravitando
no papel,
em mim,
entre o silêncio
e o universo, assim...

Sodalício, mesma pessoa, enfim.
Em mim,
então viver inúmeros idiomas,
as palavras, as letras,
nas redomas.
No fim...


(Poesia de minha autoria).

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