36. História do homem psicanalítico
11/03/2019
Aqui, neste momento, é importante lembrar que o homem psicanalítico nem sempre existiu. Havia espaços escritos e menções sobre o psiquismo humano tido como alma, espírito, parte não orgânica e parte imaterial. Só depois da metapsicologia, que, conforme já foi brevemente enunciada em outras narrativas, é que surgiu o homem psicanalítico como parte integrante da atualidade.
Também é importante observar-se que hoje muita gente sabe o que é ser analista e muita gente sabe onde eles se encontram: um mundo de faz de conta, um consultório, onde quase tudo é possível, onde a realidade pouco influencia, onde se podem associar palavras de modo mais ou menos livre. O indivíduo que o procura não ouve nada dele e produz em seu mundo interno algum novo conhecimento.
O homem psicanalítico é recente. É pós-Freud, revisto e ampliado por tantos outros psicanalistas. Os fenômenos da transferência, contra transferência, preconceitos, lacunas de conhecimento do analisando e do próprio analista já são bem conhecidos. Hoje, a metapsicologia tem uma história diversa com muito mais criatividade. Quando Freud procurou Charcot, possuía influencia do saber neurológico e ainda não havia escrito que o psiquismo só se explica pelo psíquico, conforme já foi visto anteriormente. A neurologia, a organicidade e a histopatologia somente explicam a doença no sentido orgânico e médico. Assim, o psiquismo era e, infelizmente para muitos, ainda é articulado ao cerne anatopatológico peculiar à medicina.
Nossa essência pode buscar no orgânico associações destinadas à expressão de conflitos psíquicos. Porém, a causa deles só pode ser compreendida a partir do nosso mundo interno e suas tantas fantasias.
O leitor sempre deverá lembrar que na Viena onde Freud fez suas descobertas havia forte repressão da sexualidade dos indivíduos. Quase nada era permitido, como sempre, aos menos protegidos pelo poder. O proibido como um todo era a base dessa civilização vitoriana. Desse modo, a gênese do sujeito estava muito associada com a teoria da sedução. Experiências sexuais prematuras vivenciadas passivamente pelos envolvidos e a, obviamente, excitação de zonas erógenas por parte dos adultos. Por exemplo, o pai como pedófilo e incestuoso ou a mãe tão zelosa e higiênica. Ambos fariam propriamente uma criança psiconeurótica.
Em carta a Fliess, Freud acredita que deveriam existir muitos pais perversos, criando um acontecimento real primitivo ou o fantasma originário rico em fantasias eróticas. A criança, em estado de imaturidade e despreparo, não conseguiria reagir adequadamente. Não existiria possibilidade de simbolização ou representação da vivência de maneira traumática.
O leitor também já sabe que os fatos acontecidos ou não encontram-se organizados no mundo interno da criança, que irá interpretar os gestos dos adultos como fatos acontecidos na própria realidade. Isso não significa, é óbvio, que não existam pedófilos perversos entre os adultos. Porém, cada um de nós já desejou ser tocado e excitado pelos adultos, zelosos ou não. O autoerotismo de cada um obedece ao mundo interno e não necessariamente à realidade objetiva. A civilização não origina sempre o mundo real. Os fatos concretos podem nunca ter acontecido, mas na alma de cada um, na essência de cada um, os fatos, geralmente eróticos e também agressivos, aconteceram de verdade.
Freud imaginou a partir da teoria do trauma da sedução concreta uma Viena desregrada e perversa. É claro que pode se pensar assim. Abandonou a teoria do trauma e o episódio primário da sedução por um adulto. Descobriu que existem fatores internalizados, filogenéticos, fixados estruturalmente e eles podem alimentar cadeias associativas eróticas ou erotizáveis e cadeias associativas agressivas.
Só mais tarde, em “Além do princípio do prazer”, que Freud enfatizou a mescla humana de erotismo com agressividade, como se sabe. A leitura do inconsciente é simbólica. Procura significação como no teatro particular e na limpeza da chaminé, consideradas por Breuer na "famosa histérica Ana O”. Trata-se de uma invenção, de um fazer de conta relevador do psiquismo humano. Trata-se de um sonho, não uma realidade efetivamente acontecida. Algo que busca simbolizar-se e não possui vinculo concreto com a realidade objetiva.
O papel do analista consiste em mostrar, por meio da interpretação, as repetições ou a cópia de reações emocionais, principalmente infantis. Desse modo, o inconsciente vai sendo conhecido e sendo também civilizado. As paixões poderosas tornam-se menos violentas no contexto da simbolização e da representação. Sabemos que qualquer amor ou ódio originam-se nas escolhas objetais da infância e, mais tarde, podem criar fenômenos psíquicos anormais. O amor transferencial é bastante influenciado pela própria situação psicanalítica, pelo aumento da resistência e, conforme estamos enfocando, pela grande desconsideração do real.
Agora, em uma breve história da metapsicologia e inconsciente de Freud e em outras narrativas, pretendo enfatizar o papel da transferência, da técnica psicanalítica e da formação desse estranho profissional especializado na alma humana. Alma aqui, evidentemente, não é um termo religioso e sim um termo que diz respeito à essência de cada um de nós.
No início, Freud observava os sintomas das pacientes histéricas e pressionava a mão na cabeça delas para que produzissem associações relacionadas aos sintomas. Sugestionava enfaticamente essas pessoas, objetivando o modelo médico de cura e também a compreensão mais íntima desses transtornos. Logo a seguir, após hipnose e associações, buscava minimizar e entender o que observava. Ele próprio não se reconhecia como um bom hipnotizador. Posteriormente, associações induzidas e mais tarde associações livres fizeram-no inventar o saber metapsicológico, e ocorreram as interpretações. Somente mais tarde ainda, nos pós-escritos sobre Dora, descreveu os aspectos transferenciais envolvidos. Ao longo de seus trabalhos, teorizou a combinação entre biologismo funcional como uma espécie de antropofilogênese das fantasias, relidas por Lacan como metáforas e metonímias.
Descreveu as zonas erógenas como os lugares de trânsito, de trocas e vínculos com o outro. A herança privilegiada na qual o ser humano traduz e se traduz. A realidade é aquilo que não pode ser fantasiada e traduzida em representações.
Em outras narrativas, verificamos que os significantes substituem as palavras que representam as coisas e, claro, não são fiéis a elas. Lacan prioriza o conceito de significante cujo significado, como o leitor poderá entender, surge na relação transferencial do homem psicanalítico. É enigmático e polissêmico, pois tanto o significante como o significado não possuem contornos precisos vinculados com os acontecimentos reais perdidos para sempre na história de cada um de nós. O preceito délfico “conheça a ti mesmo” já representava certa articulação do sujeito próprio com o sujeito social. Sócrates, Platão, Epicuro, Sêneca e Marco Aurélio, de algum modo, descreveram tanto a necessidade de autoconhecimento como dos cuidados para o possível e complexo conhecimento da profundidade do indivíduo, sua verdadeira alma ou essência como estamos enfocando. Bem mais tarde, surgiu, como se sabe, a metapsicologia freudiana e, portanto, o conceito de inconsciente.
Cada de um nós tem de construir ou inventar outro tipo de linguagem, diferente das que julgávamos únicas. Devemos, sempre que possível, mobilizar as fantasias cristalizadas para justificar as atitudes frente a nós mesmos, ao mundo e a tantas outras pessoas. O conhecimento da família, da própria cultura e dos valores éticos faz-nos melhores na corrida narcísica e também na origem de tantos fanatismos. Nossos genes egotistas só desejam a reprodução de cópias de nós mesmos. O diferente incomoda. Também, é claro, não devemos antropomorfizar a natureza. Somos humanamente animais morais, tendo como origem o complexo de Édipo e, logo, a construção da linguagem.
Há cerca de cinco mil anos, uma princesa da vigésima dinastia foi curada de uma possessão diabólica. Psiquismo e linguagem foram questionados. Na Idade Média, houve a caça às bruxas e também às epidemias das freiras com tiques e palavrões. Tiques vocais e também tiques motores. Interessante observar-se a síndrome de Gilles de La Tourette em inúmeras freiras como objetivo de expressão dos desejos e alguma aceitação civilizatória. Nesse contexto, várias freiras puderam mobilizar o establishment sem o rótulo estigmatizante de “possessão diabólica” em massa. Também é interessante observar que a neurossífilis criava em geral megalomania. Somente um delírio de grandeza poderia equilibrar tanta rejeição social e descaso. Sabemos que a origem dos manicômios objetivava, antes de mais nada, retirar as pessoas dos lugares mais próximos. Seres humildes buscavam algum poder no próprio autoconhecimento delirante. No complexo processo civilizatório, sempre há uma internalização da agressividade.
Como se sabe, tanto Eros como Tânatos precisam ser domesticados para fins mais harmoniosos entre nós, que, segundo Freud, somos perversos, despóticos e narcísicos.
Já em Empédocles de Agrigento, em 495 a.C., havia os dois princípios que dirigem os eventos na vida do universo e na vida psíquica do homem. Amor versus discórdia, harmonia versus conflito. Em Freud, fusão ou defusão pulsional.
Harmonia entre os quatro elementos na concepção de Empédocles: água, terra, fogo e ar. Busca de estruturas mais complexas em Freud. Do autoerotismo aos narcisismos até o amor. Este não deixa de ser uma espécie de narcisismo antes de ser uma verdadeira relação objetal. Síntese e decomposição. Vida ou morte. Fusão ou defusão pulsional, tudo poderá ocorrer nas vicissitudes complexas e inúmeras próprias de cada destino humano.
No próximo texto pretendo enfatizar que existem três pilares básicos na formação do homem que exerce psicanálise: estudo, supervisão e análise individual.
MOMO
Carnaval.
Carne, festa,
floresta sensual.
Carnaval...
Desfilam-se em avenidas
eróticos seres,
destilados no álcool,
destilados na ilusão.
Carnívoros, músculos fortes
em solidão,
corpos, rostos,
peitos, quadris.
Ardis em profusão.
Homens e mulheres
dançam feito imbecis.
Mulheres homens
vorazes,
brincam no carnaval
de muitas carcaças.
Arruaças em avenidas,
em outras praças,
cheganças, despedidas,
compradas ou vendidas.
Navegam vigas,
navegam os vãos,
carnaval em festa,
e nos tons.
Espaços ocupados
até exaustão.
Suporte na viga,
transporte no vão,
vida do Rosa e do Tom.
Vê-se sem beira,
festa da cumeeira,
em águas de março,
em muitos textos e mágoas.
Troco na prece,
troco na poesia,
trecho empresta,
texto sem contexto,
pretexto
na vida do Rosa e do Tom.
Carnaval
carne, festa
estúpida ilusão.
Traço no texto
da cumeeira
troço em servidão.
Homens e mulheres
batucam no chão.
Desfilam-se nas
avenidas, eróticos
seres destilados
no álcool,
transpassados em ilusão.
Transpassados no erotismo,
de mão em mão.
Poesia de minha autoria.
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