26. As causas ou a etiologia dos transtornos mentais 3
26/11/2018
Mencionamos, no início deste capítulo, uma complexa articulação entre os conceitos de sobredeterminação, série complementar e de fixação (correspondente ao recalcamento originário ou primitivo), tendo em vista o problema de "escolha de neurose", enunciado por Freud. Agora, é importante acrescentar outro conceito a essa complexa articulação relacionada com a temporalidade do aparelho psíquico: o après-coup.
Este termo foi utilizado por Freud desde o início de sua obra na forma do substantivo alemão "nachtraglichkeit", que podemos traduzir por posterioridade. Faz parte do sistema conceitual de Freud, mas só recentemente foi valorizada a importância desse termo, que apresenta, também, amplas relações com a causalidade psíquica.
Por meio do conceito de après-coup, observa-se uma tendência a rejeitar a ideia, muito difundida, de que o passado determine radicalmente o presente. Sabemos que não é possível reduzir todos os desejos humanos ao passado remoto, às primeiras experiências. A noção de après-coup sugere que, de tempos em tempos, os traços mnêmicos registrados no aparelho psíquico sofrem uma modificação, por meio dos impactos novos. Assim, o presente vai reorganizando o passado. Isso causa uma espécie de reinscrição, que altera e atualiza o passado, criando novos significados até então desconhecidos para o indivíduo.
Dessa forma, também podemos observar que o après-coup ilustra a razão de se considerarem os problemas atuais como determinados por um passado real ou imaginário, por meio de uma reinterpretação deste mesmo passado, como justificativa racionalizada para a fuga ao presente. Nesse sentido, quantas pessoas não justificam sua problemática sexual por um remoto episódio de sedução por adultos? Infelizmente, muitos profissionais em saúde mental também compartilham essa teoria da sedução, sobretudo à medida que não compreendem a importância do princípio da posterioridade, ou seja, o après-coup, que, como já foi esclarecido, implica uma mudança constante do sentido da história de cada indivíduo, por meio da atualidade do tempo presente.
Freud enfatizou, em vários momentos de sua obra, o aspecto de que as vivências não elaboradas em função de algum acontecimento traumático são aquelas que não podem ser absorvidas e integradas pelo indivíduo. Isso cria "algumas marcas" permanentes, que sofrem ao longo da vida uma série de novas reinterpretações, que influem decididamente no comportamento, por apresentarem uma nítida eficácia psíquica. Na teoria analítica, a ênfase atribuída ao desenvolvimento da psicossexualidade deve-se ao fato de que, neste desenvolvimento, existem defasagens temporais que funcionam como vivência não elaboradas, passíveis de reinterpretação por meio do après-coup, o que implica novos sentidos ou significações pela eficácia psíquica já mencionada.
Outro importante aspecto que merece ser enfocado no que tange ao après-coup consiste na possibilidade de ocorrência de processos primários póstumos, o que, à primeira vista, pode parecer paradoxal. Na verdade, por meio das novas interpretações de sua história, que o indivíduo vinha fazendo ao longo do tempo, surge o reavivamento de alguns traços mnêmicos ligados à sexualidade, e só a partir deste momento pode surgir um transtorno neurótico, pois alguns fatos ou vivência que não tinham sentido ou significação passam a tê-lo. A produção deste novo sentido pode provocar alterações do comportamento, que se traduzem em várias entidades psicopatológicas.
Assim, uma determinada cena traumática latente, ocorrida num remoto período do indivíduo, sem eficácia psíquica, pode, por meio de uma nova vivência proporcionar o traumatismo posterior, agora eficaz e explícito, ainda que recalcado. "Recalca-se se uma recordação só se tornou traumatismo posteriormente".
Pela noção de après-coup, podemos inferir que tanto as vivências individuais ou as fantasias (o imaginado), como mesmo as protofantasias (equivalentes aos protótipos arquetípicos de Jung), podem ser reativadas com um novo sentido, conforme já foi discutido nesse contexto.
Terminando este breve enfoque sobre o importante conceito freudiano de après-coup, muitas vezes não devidamente valorizado nas discussões psicológicas ou mesmo psicanalíticas, devemos lembrar que tal omissão determina uma série de incoerências a respeito do desenvolvimento cronológico do aparelho psíquico.
Só podemos inferir sobre a vida psíquica remota, ainda incipiente, por meio da releitura feita sobre esses primórdios, por meio da ótica do homem adulto, ou melhor, do psicólogo ou psicanalista que agora irá interpretar o passado com todos os conhecimentos obtidos posteriormente. Sabemos o quanto é difícil falar de uma etapa tão remota, na qual a linguagem inexistia, e mesmo sobre coisas não verbalizáveis, algumas das quais nunca poderão ser simbolizadas em toda a vida psíquica ulterior.
A noção de après-coup foi reduzida à de ação diferida pelos autores ingleses no sentido de uma distância temporal entre o estímulo e a resposta. Esta redução está baseada nos "Estudos sobre a Histeria", nos quais Freud, a propósito do fenômeno histérico, procura demonstrar que existem traumatismos psíquicos com um elevado nível de descarga registrada, embora ainda se trate de uma autêntica elaboração, por meio de um "trabalho de memória" bem diferente de uma mera descarga de energia acumulada.
Assim, na Standard Edition, o "nachtraglichkeit" freudiano foi considerado como "deferred-action". Acreditamos, como fazem Laplanche e Pontalis, que não se deve reduzir a posterioridade a uma teoria estritamente econômica de ab-reação. Aquela deve ser pensada como o proposto nas considerações anteriores, enquanto a ab-reação sugere uma descarga emocional, muitas vezes violenta, através da qual é possível a liberação do componente afetivo vinculado à memória de um trauma psíquico, para que se resolva o núcleo patógeno coartado em suas possibilidades de expressão. Está relacionada com o chamado efeito de catarse, originário da palavra grega "catharsis", utilizada por Aristóteles com referência às respostas emotivas provocadas no indivíduo, decorrentes de presenciar a tragédia (drama encenado). Tem o significado de purificação ou purgação do psiquismo, por meio da descarga dos afetos coartados pela neurose, à medida que possa recordar e reviver, numa atmosfera carregada de afeto, as situações traumáticas de sua história pessoal.
Na próxima segunda-feira, o texto será uma continuação deste tema.
ESPERANDO
Letras claras.
Letras nítidas.
Dançam na página em branco.
Que pena!
Nada de poema.
No desejo
daquela morena.
(Poesia de minha autoria).
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