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154. O burocrata

Ele parece vazio. Não é de direita, nem de esquerda. Nem do centro parecer ser. É vazio mesmo, até sem ideologia, sem sonhos. Não tem fala própria. Classifica papéis com maestria e obediência. Recebe ordens e arruma tudo com papéis, carimbos e arquivos. Nem o nada quer se aproximar dele, que continua impávido e orgulhoso. Nem ele próprio sabe de sua pobreza e sua terrível podridão de alma. Mas, caminha assim. Na repartição pública, no cartório, nas firmas e contratos reconhecidos. Caminha assim e assim faz sua verdade, a única que conhece ou talvez não conheça também.

Tudo é perfeito entre esses arquivos e papéis ajustados, classificados, sempre em obediência. A cobiça, o sonho o medo e a esperança mostram-se agora numa ordem perfeita. Parece que sempre existirão. Dentro ou fora de qualquer história nova, ele busca o utópico arquivo do nada, pois só obedece aos papéis, carimbos e arquivos.

Ele asfixia tudo. Parece feito de alguma matéria inexistente, jamais vista, e foi nascido por arte de algum deus pobre de alma, sem significação alguma, sem alento, sem nada escrever de ânimo próprio. Por isso, não tem nenhuma palavra a dizer, nenhuma frase a falar. Vive escrevendo o que lhe ordenam, como foi escrito algumas vezes. Nesses papéis, observa-se que não consegue transmitir ideia alguma, pois não tem nunca nada a dizer de verdade, ou ao menos verdade em que ele acredite.

Sua crença não se percebe, se é que existe. Não tem voz para nada. Parece que ouvimos só um distante eco, sem sujeito, um eco vindo do nada.

Para o burocrata, tudo é uma só certeza. A dúvida, a contradição, a diversidade são produtos de uma heresia incabível. Porém, ele sabe preservar sua vida e seu emprego. Sua família e seus amigos também são preservados, mas continua sem opinião que se origine de verdade em sua alma plena de “verdades absolutas”. Nada pode alterar um pensamento monolítico, “correto” e, sempre, sempre, virtual.

É triste a observação de que geralmente eles, os burocratas, estão associados ao poder, mas podem modificar isso, sem vestígio algum, se o poder for transformando, for substituído por outro poder. Isso é muito sutil. Mesmo os atentos não conseguem enxergar o âmago do burocrata, porque é possível que este seja muito escondido ou talvez não exista de fato. Só e só parecia.

Onde o burocrata está?… entre nós. Ele nunca pode interessar-se por verdade alguma, nem as que lhe interessam. Sempre tudo é possível mesmo, fora as impossibilidades da vida. Verdade ou mentira sugerem opiniões, mas ele, o burocrata, não pode tê-las. Acho que não é para sair de cima do muro e tomar alguma decisão. Acho que ele não pode mesmo, porque não sabe. Seu cérebro, sua alma e seu corpo obedecem a uma naturalidade absoluta.

A lei, a ordem e a eterna obediência não podem ser definidoras de nada. É importante não ter nenhuma possibilidade para dividir. Qualquer decisão obriga a certa ideologia, correta ou não. A associação de ideias obedece ao nada e nada de significação. Até a matemática aqui não possui equações. O burocrata persiste, vive e nem ele sabe se ganha ou se perde.

Onde está o burocrata? É claro que está entre nós. Também está dentro de cada um de nós: em nosso interior, dentro de cada indivíduo, existe certa indiferença que auxilia na manutenção da neutralidade ideológica.

A burocracia está fora e dentro de cada indivíduo, numa proporção bastante variável. Esse ponto pode fornecer algum conforto. A razão e a desrazão constituem apenas uma parte. Porém, é claro que algumas pessoas são predominantemente burocratas, cartoriais, ordeiras e assim caminham no vazio de suas opiniões. Ao mesmo tempo, garantem proteção face ao conflituoso cotidiano, com tantas modificações, sempre possíveis, que transformam os indivíduos com os quais ele convive, a religião, a escola e toda a nossa estranha civilização.

PEDRAS

Outra linguagem:
pedras, poesias, palhaços.
versos e rimas.
Relógio tombado.
porteiro enferrujado.
Outro, o outro do outro.
Metafísico calendário.
Passos, espaço ausente.
Passo solene.
Pedras imóveis, parindo silêncio.
Não há pegadas, nem futuro.
Sol, samba e escuro.
Alma, muro de nada.
Nenhum barulho acaba.
Entulho nenhum desaba.
Poesia só pedras parindo
silêncio. Muito imóveis.
Mesmos lugares.

Carlos Roberto Aricó

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