122. O mal-estar na cultura
09/03/2021
Esse trabalho de Freud diz respeito ao ser humano perceber e sofrer com seu desamparo frente aos demais indivíduos, família, escola e às fantásticas forças da natureza. Trata-se de uma interpretação do mundo civilizado semelhante ao escrito anterior, O futuro de uma ilusão, como já foi narrado por mim. Este consiste no indivíduo lutar, inclusive eventualmente com ajuda da religião, com os outros semelhantes e a natureza, com todas as dificuldades, doenças, pouca energia úti e, caminhos com complicações.
O Mal-estar na cultura e O futuro de uma Ilusão foram trabalhos publicados em 1922 e em 1930, respectivamente, próximos na narrativa e nos fatos relacionados. Freud enfatiza, a partir do sadismo, a pulsão de morte exteriorizada. Devo, antes de tudo, explicar que cultura é diferente de civilização, como está traduzido no título da obra.
Cultura é um modelo de identidade, da maneira de ser própria do indivíduo, junto com seu modo de ação e de pensar. Cultura independe, portanto, da civilização e serve inclusive aos povos diversos em muita coisa e que foram denominados de primitivos, ou seja, não civilizados. O mal-estar é genérico para a humanidade como um todo e não somente uma parte.
Sabemos que, para a culturalização ou para ser civilizado, o indivíduo enfrenta algo que cria leis internas a partir da norma geral, por meio de diversão, substituição e intoxicação. Tudo é muito complicado e até a doença mental ou a loucura podem ser uma das últimas fugas antes da demência, para cada pessoa sentir-se vivendo, ou produzindo, minimizando as diferenças reais ou até imaginárias.
Busca-se o que for possível para a manutenção do narcisismo de cada ser humano. A infelicidade opõe-se ao princípio do próprio prazer. Buscam-se as diversões em suas várias formas: jogos, TV, sexo e, inclusive, no sofrimento, em se tratando de masoquistas.
Outro jeito é o de substituir um modelo menos aceito por outro e, assim, permanecer na cultura com certo reconhecimento. Deixa de ser do modelo A e se converte para o modelo B, ambos pertencentes ao mundo civilizado. A arte poética, racional e pictórica pode ser exemplo dessa valorizada substituição.
Outra forma é por meio das intoxicações. As drogas tentam e às vezes até conseguem diminuir a dureza terrível da realidade externa. Nós, humanos, muitas vezes mesclamos esses caminhos para nossa culturalização.
O ego e o narcisismo sofrem a partir das forças da natureza, no encontro com seus semelhantes e na quase incondicional norma. A normalização pode criar até a loucura e outros transtornos mentais. Isso já foi enunciado em outros textos. Não devemos esquecer que toda religião pode reforçar muito a norma ou as regras vigentes para a existência da humanidade.
Nossa biologia, predominantemente genética, associada com a educação e com os costumes, pode ter mais êxito no contexto civilizatório. Capital e inteligência ajudam muito a lidar com a possibilidade de boas escolhas. Idem com as ciências e as artes.
O indivíduo foge dos parâmetros da igualdade. Somos diferentes e a civilização só aumenta mais ainda essas diferenças profundas. A liberdade tem o dever de criar sempre nossas escolhas: pertinentes ou negativas.
Parece-me óbvio que devem existir leis que aceitem e protejam tantas diferenças. As minorias nunca poderão estar fora da humanidade. Elas também ajudam a construir a civilização. Além disso, temos nosso dever de auxiliar, independentemente de qualquer ideologia partidária.
Minimizar o sofrimento para todos e, é claro, encarar os deveres de modo mais explícito e livre, se possível. Tânatos e Eros, vida e morte são os constituintes de cada indivíduo. Assim, as associações ou dissociações podem auxiliar ou prejudicar a busca e manutenção de uma humanidade melhor, composta por pessoas melhores e mais aperfeiçoadas no contexto difícil de viver. Perder ou ganhar podem significar menos e aprender, em geral, desenvolve conhecimento de si mesmo e do mundo.
Não devemos esquecer que o homem civilizado trocou, em nome do narcisismo presente em cada um nós, uma parcela da felicidade por uma parcela de segurança, o que atualmente as próprias leis da cultura muitas vezes não possibilitam.
Também narrando sobre as pulsões, é importante verificar que a pulsão da vida, ou Eros, procura desenvolver-se no outro, nas complexidades. A pulsão de morte, ou Tânatos, vai simplificando tudo, procura o mais simples, o retorno do inanimado à terra, ao forno do crematório, ao nada. Isso tudo não conhecemos exatamente. Assim, nos parece, obedece à nossa lógica e nossa pretensa racionalidade, sempre vinculada ao “saber”científico, não ao saber religioso.
O amor deve vencer no planeta para fazer-se a civilização. Coexiste com ele o amor sublimado, que também auxilia o combate na pulsão de morte, que pode ser útil em algumas circunstâncias: polícia, exército, fábrica, frigoríficos... A cultura precisa de tudo e, é claro, da criatividade. O setor educativo, também.
O desenvolvimento do Superego, até a sua severidade, depende das pulsões agressivas. É estruturado pela introjeção dos valores culturais, pelo pai, mãe, família, escola e moral vigente. O sentimento de culpa é uma das principais consequências do Superego introjetado a partir da cultura e em parte talvez até com alguma parte genética e constitucional.
Egoísmo e altruísmo dependem do Superego e o ajudam muito a fazer a civilização, sem alterar tanto as perturbações e outras complexidades para nossa existência e adaptação às regras do jogo da vida.
Nas próximas semanas falarei sobre o sonho da injeção de Irma.
MORTO
Lívido, tão branco.
Está fixo, imóvel.
Deitado, vozes e prantos.
Notícias… notícias…
Saudade fugindo,
sempre a fugir
em cada lamento.
Congelado tempo.
Num só dia, toda agonia de séculos.
Branco o morto.
Vestindo só acaso
lívido, imóvel, sem atraso.
Não caminha.
Aguarda a campa.
Aguarda a cova.
Um bom sonho,
sem nada sonhar.
Maratona terminou calada
mais uma vida se acaba
madrugada e nada… nada.
Lembranças, memórias
poemas tristes, histórias.
Notícias… notícias…
Sobre o morto
eternamente absorto
sem carícias.
Da vida não há sevícias,
só um tempo: presente.
O fim, fim etéreo
sempre ausente.
Há choro com mistério
em descrentes vozes
do cemitério
das vozes baixas
sem impropério.
Agora jaz um homem
muito bom…
Carlos Roberto Aricó
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