112. O trabalho do negativo: pulsão de morte
17/11/2020
Pretendo, nesta narrativa, enfatizar o trabalho do negativo, que um importante psicanalista pronunciou em uma conferência aqui no Brasil. Mas, é óbvio que, por outras razões além do patriotismo ou um certo nacionalismo envolvido.
André Green diz não ficar muito à vontade quando se fala dele como um teórico. Sabemos que é bem difícil a teoria e clínica andarem juntas. Isso ocorre em vários aspectos, e você leitor já observou isso no seu próprio trabalho psicanalítico.
Para mim é claro que não podemos fazer teorização anarquista, até sem limites que encontramos na clínica, nos nossos psiconeuróticos, nos nossos pacientes.
Já foi mencionado Green como aquele que enunciou o trabalho psíquico importante no mundo representacional, ou seja, toda a nossa linguagem diz respeito a coisas que ela procura revelar linguisticamente, com nomes, com substantivos, adjetivos e verbos. Ou seja, por meio dessas coisas mencionadas, linguisticamente nós podemos fazer um certo entendimento da "realidade".
Nas histerias, algumas cadeias associativas ficam isoladas de outras, ou alguns dados são encontrados no corpo, no orgânico, determinada "conversão". Assim descrevemos, como já estava em Freud, as histerias dissociavas e as conversivas, as que dividem praticamente o indivíduo, e as que criam paralisias e alterações funcionais em alguma parte desse organismo.
Você já sabe muito da pessoa meio sonâmbula, da paralisada ou cega, mas sem comprometimento neurológico evidente. Ou seja, indivíduos que sofrem e fazem sofrer, sem lesão tecidual alguma.
É bem oportuno recordarmos que, no âmbito das palavras, da linguagem e das cadeias associativas, é que encontramos o psiquismo, tão distante de qualquer organicidade neurológica.
Na observação dos sintomas fóbicos encontra-se a projeção do mundo interno em alguma coisa na qual o indivíduo não vê correlação. Nos neuróticos obsessivos existe um verdadeiro isolamento entre a representação de ideia e a afetiva. O paciente parece que não possui afeto, ou isto é bem deslocado para o mundo exterior. Porém, tudo se passa no mundo da linguagem representacional, sempre. A linguagem tentando explicar o desconhecido.
Conforme estamos narrando, o contexto é pulsional e não mais instintivo como ocorre nos seres vivos que não são humanos, nos quais a pulsão equivale ao instinto em outros seres.
Assinala Green:
“Parece, então, que estamos diante de uma espécie de falso problema, que consistiria em dizer: ou é a pulsão, ou é o objeto. Ou vocês admitem que é uma espécie de força mais ou menos inata, enraizada no somático, de funcionamento quase automático, que certamente pode mudar seus objetivos, seus objetos… ou então é o objeto, e o objeto é a relação inter-humana. Pois bem, creio que este é um falso dilema. Meu ponto de vista é de que o objeto é o revelador primem no somático: suas pulsões só chegarão a existir e só serão para ele objeto de conhecimento, ou só mobilizarão nele mecanismos de significação, na medida em que o objeto as revelar. O que quer dizer de modo mais claro, que é através da existência do objeto e, em participar, da falta do objeto, que a pulsão se faz sentir, pois a pulsão satisfeita quase não faz sentir seus efeitos” (André Green em Conferências Brasileiras - metapsicologia dos limites, p. 71).
Nessa citação, observa-se a existência de um objeto, do outro. No outro que eu introjeto e projeto, a partir do meu próprio self. Falamos aqui de um momento bem importante: a relação inter-humana. Talvez, o sujeito da falta? O objeto é o revelador da pulsão e diferente em cada um de nós, em cada momento de nossa própria história e muito diferente do que acontece também a tantos outros seres vivos.
Green menciona a história de um voyeur que se torna fotógrafo. Investe no desejo vinculado ao prazer em ver, em observar. Ele próprio admite que tudo é bem mais complexo. Ou seja, ele parte de um desejo aparentemente simples, mas que pode revelar toda uma complexidade pulsional no indivíduo. É uma caricatura do saber psicanalítico, aquilo que se observa no contexto.
Conforme sabemos, há um longo caminho para se alcançar uma verdadeira relação objetal, a rigor nunca atingida em plenitude, pois somos bastante imperfeitos para muitas coisas; entendo que para a grande maioria das coisas. Devemos, como possibilidade de interagir, passar das zonas erógenas oral, anal, genital, complexo de Édipo dual, triangular e assim por diante. Eros é nosso condutor e assim vai possibilitando as conquistas, bastante complexas. O amor vai tornando as possibilidades mais verdadeiras, mais interativas, mais econômicas para cada psiquismo. Existe uma função objetivamente direcionada ao mundo objetal e, claro, há também o outro lado.
Assinala Green:
“O que quero dizer, e isso concerne tanto à clínica quanto à técnica psicanalítica, é que da mesma maneira que postulo a existência de uma função objetalizante, que liga o objeto à pulsão de vida ou de amor, postulo também a existência de uma função desobjetalizante para a pulsão de morte. O que significa a pulsão desobjetalizante? Significa que a pulsão de morte entra em ação cada vez que o sujeito realiza, diante do objeto, uma desqualificação de sua própria singularidade e de seus próprios atributos: seja quando o objeto se torna anônimo, como o objeto da perversão, por exemplo; ou quando o objeto é despojado de suas características de ser que sente e pensa, como no caso da tortura; ou então o objeto é desprovido de sua identidade humana, e são as mil maneiras pelas quais se exercem as formas de segregação social e até mesmo psiquiátrica, como vocês sabem…” (André Green em Conferências Brasileiras - metapsicologia dos limites, p. 75 e 76).
A pulsão ligada à morte, ao negativo, ao nada, nos separa das coisas boas, que aumentariam nosso narcisismo positivo. Esta pulsão separa elementos que deveriam estar integrados. Muitas deles estão dissociados a partir dessa função do negativo, mas para que ocorra a sua simbolização, em muitos momentos, é necessária essa separação.
Os limites entre o sujeito e outro são grandes. Trata-se aqui de uma função desobjetalizante e que prende o indivíduo em si mesmo. Ou seja, é muito difícil a pessoa externar-se de modo verdadeiro. É só uma parte dela que é colocada na realidade externa.
Essa pulsão aumenta nas perversões e nas psicoses e certamente empobrece a essência humana. É algo que diz constantemente ao sujeito um não, uma negação bem-orquestrada de negatividade e morte. O indivíduo isola-se do social, do outro e da realidade externa. Não deixa de ser o caminho escolhido para o mundo psicótico, no qual a loucura vai ocupando os espaços do sujeito com o outro.
Na próxima semana o texto será sobre populismo.
CAMINHAR
Sou destino.
Sou desatino.
Aurora, ou poente:
só me façam contente.
Sou destino,
desatino,
só não me façam indiferente.
Com fragilidades tantas,
meio morto, meio vivo, sobrevivo.
Meu sangue, minha poesia,
meus sonhos pertencem à vida.
Então, sobrevivo.
Ora morto, ora vivo.
Caminho, sem aviso.
É bem tarde. Nada importa.
O tempo morre.
Mas, eu caminho. Sobrevivo.
Carlos Roberto Aricó
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